MEUS OLHOS NA COROA DA RAINHA

"Aqui, em misericórdia, chovia perdão. Dava gosto de se ver. O dia que caía benção, era o sábado de aleluia. Era lindo. Parecia poesia. Os homens tudo de joelho chorando prece e as mulheres todas de perna aberta pro ar. Queriam se redimir de tudo que era pecado. E dava certo mesmo. Até criança ganhava mais juízo. Mas não é sobre o sábado que eu preciso falar agora. É sobre o que aconteceu num sábado. O mar, vendo que tinha promessa sendo perdoada mandou uma sereia pra beira da pedra. E eu tava lá. Linda e amada pelo meu marujo. Cinco anos juntos. E eu, gravidinha da Silva. Pode parecer mentira ou até coisa do diabo mas não foi não. Foi real. Meu marido só não sabia que eu tinha prometido coisa pro mar caso emprenhasse de vez. O mar veio pedir meus olhos. Ela veio me querer roubar a visão como pagamento da promessa. E como a água gosta de trazer mistério. Disseram pra mim que havia uma única forma de escapar. Meu marido precisava negar uma sereia. Eu no começo achei impossível. Imagina? Homem negar mulher bonita que canta? Desde quando? Pois se fez. A água jogou mistério areia pra cima e ela se fez linda frente o farol. Cantou. Cantou uma vez. Cantou duas. Nem o ouvido ele precisou tapar. Negou tudinho. Era fiel. Fiel mesmo. Despiu-se frente a ele com um corpo que nem doze de mim daria pé. Branca. Bem alva mesmo. Cabelos ondulados seios pra baixo. Uma daquelas belezuras que não se admite nem em quadro. Negou tudinho. Não tinha canto, peladez e nem olhar claro que desse jeito naquele homem. Me amava com a certeza de um nome de filho. E nem sabia da minha promessa. Sabia coisa nenhuma. Era firme na promessa do altar. Nunca se quer trocou olhar com lavadeira ou madame de passagem. Nunquinha. Ela cantou mais uma vez. E nuazinha abriu as pernas chamando ele pra dentro do mar. Nada. Negou-se. Daquele dia em diante, ele foi conhecido como o homem que negou a sereia. Vinha gente em casa perguntar como e por que. Nunca. Nunca ninguém se salvou da maldição do encanto. E eu, certeira na decisão de seguir com ele o resto dos meus dias, sustentava um orgulho que não cabia em mim. Um dia, levei o pequeno pra se banhar perto da cachoeira. E enquanto lavava umas mudas de calça, ela saiu da água e garrou as unhas aqui. Bem aqui. No meio do meu rosto e me levou as vista. Tem gente que diz que lá no fundo zombavam a vida dela. Ela tinha sido a única negada em não sei quantos anos. Colocou meu par de vista na coroa da Rainha pra voltar a ser respeitada. Disse que era de gente de má fé. Que não prestava e mentia promessa. A Rainha, astuta que só ela, descobriu o truque, mandou ela subir pro céu como castigo. Fez ela mudar de ordem e de lei pra ver se aprende. A liberdade debaixo não é que nem as de cima. Nadinha igual. Dizem que ela chorava água salgada. Que era pra arder pelo que me fez. Mas vai saber se era verdade? Passou lá em cima quatro sábados de aleluia e depois desceu. Voltou pro mar jurando sabedoria. Mas eu não deixei barato coisa nenhuma. Era uma quinta feira. Deixei o anjinho dormindo e coloquei as roupas do meu marido. Esperei apontar a lua e me puis de joelho na beira. De costas e de joelho na beira. Não deu outra. Nem meia hora de espera e ela subiu cantando pra marinheiro. Na cintura, eu tinha um facão que ficava debaixo da cama caso alguma coisa acontecesse. Foi certeiro! Com a ajuda do breu e o pouco de luz vinda da lua ela nem percebeu. Arranquei o rabo da diaba! Assim, com as minhas próprias mãos. To pagando pela promessa do castigo. Fiz. Fiz mesmo e não me arrependo. Eu to cega, não to? Pois ela que não nade mais. Daí, desde então eu to aqui. Guiando gente cega sem rumo. Gente que só promete e não cumpre. Que põe nos ombros dos outros e jura gritar saudade das coisas que deixa de fazer. Olhe. Parece que o mar acalmou de vez. Foi? Sente o cheiro. Sente. O vento não tem mais cheiro de sal. Sente..."

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